quarta-feira, 13 de março de 2013

O fim do mundo, entre humanos e máquinas

No último dia 2 de março, o primeiro sábado do mês, tivemos a aguardada inauguração da temporada 2013 do Ciência em Foco, que exibiu o filme Dr. Fantástico (EUA/Reino Unido, 1964), seguido da palestra As máquinas de informação e o mundo fechado da guerra fria, ministrada por Henrique Cukierman, professor da PESC/COPPE, da Escola Politécnica da UFRJ e também do HCTE/UFRJ. A partir das diversas  possibilidades de discussão abertas pelo filme de Stanley Kubrick, Cukierman optou por adentrar a discussão por meio de uma reflexão sobre os artefatos técnico-científicos presentes na narrativa, cuja relevância os elevaria ao estatuto de verdadeiras estrelas do filme. A bomba atômica, os aviões, os dispositivos de comunicação e os computadores são artefatos que trazem diversas inquietações, intensificadas pelo modo próprio com que aparecem em cena. Temos, no filme, um retrato do quadro ao mesmo tempo promissor e angustiante da relação entre homens e máquinas no contexto da guerra fria.

Uma amostra da expressividade do filme pode ser destacada logo no início, quando observamos um abastecimento de um avião em pleno voo: a cena se assemelha a uma cópula entre dois aviões. À parte isso, vários nomes dos personagens apresentam um duplo-sentido erótico. Cukierman destacou o erotismo disfarçado no filme como marca de uma possível leitura, e uma ironia de Kubrick para abordar seu contraste com as pulsões destrutivas da guerra. Pode-se dizer que Dr. Fantástico trata de uma crise de comunicação. Sendo assim, seu conflito se associa a um dos temas centrais da ciência da computação e da teoria da informação: a busca de garantias para que uma informação seja transmitida sem alterações ou ruídos. A presença dos computadores chama atenção pela importância que adquirem a partir do período da guerra fria, quando passam a ganhar o estatuto de um artefato tecnológico. Até então, era comum percebermos os artefatos como expansões do sensório-motor humano - por exemplo, o trem como expansão dos pés, a roldana da musculatura etc. A linguagem, a cognição, a nobreza da dimensão mental e simbólica ainda eram privilégios do humano. Este cenário muda com a chegada do computador, que logo passa a servir de metáfora para o cérebro, por ser uma máquina capaz de decidir, agir, pensar.

No contexto de uma guerra atômica, o computador adquire um papel crucial, na medida em que as tomadas rápidas de decisões são cada vez mais fundamentais. Cukierman comentou também o modo irônico com que Kubrick faz referência a um certo otimismo dos EUA quanto à possibilidade dos efeitos de uma guerra nuclear, propagada pela mídia e pelo governo. Como exemplo, ele mostrou a capa de uma edição da revista Life, da década de 60, que anunciava planos detalhados para construir abrigos nucleares que emulavam a tranquilidade do ambiente doméstico. A concepção do cérebro como inspiração para uma máquina que pudesse ter atributos do pensamento humano se inicia durante a II Guerra, com a ideia de se produzir uma calculadora eletrônica, e evolui na direção de uma máquina inteligente. A calculadora eletrônica surge das necessidades ligadas ao cálculo balístico, tendo em vista a quantidade de variáveis envolvidas para garantir a precisão de um tiro. Cukierman comentou a definição do termo 'cibernética', elaborada pelo matemático estadunidense Norbert Wiener, em um texto de divulgação científica de 1948. Na definição, Wiener entende a cibernética como um novo campo da ciência, no qual são buscados elementos comuns entre o funcionamento de máquinas automáticas e o do sistema nervoso dos seres humanos.

No mundo que se anuncia, diante da possibilidade de analogia entre humanos e máquinas, logo advém a necessidade de dispositivos de informação e comunicação eficazes. A analogia com o humano é buscada sobretudo pela possibilidade de se modelar o processo de troca de informações e adaptações com o meio ambiente para melhor precisar as ações da máquina. Para sustentar alguma ordenação em um mundo que se desorganiza permanentemente, é preciso haver controle e comunicação para garantir boa informação trazida do meio ambiente. Quando se une a este cenário o contexto militar da cadeia de comando, temos a questão central do filme: quem, de fato, está no comando a partir daí? Como a preservação da cadeia de comando e das respostas rápidas é crucial, a eficácia do processo necessita do suporte de uma máquina como o computador, uma máquina inteligente, cujo funcionamento é pautado pela capacidade de se adaptar às mudanças externas. Cukierman salientou que todas as armas de guerra, do avião aos computadores que controlam mísseis, são complexos maquínico-humanos. A Máquina do Fim do Mundo, apresentada no filme, não passa de um conjunto de artefatos controlado por computador, que foi programado para tomar determinadas decisões. O quadro que a guerra fria estabelece irá estimular os programas de pesquisa para produzir máquinas cada vez mais efetivas, tendo como aspecto fundamental a interdisciplinaridade. Para a perspectiva cibernética trazida por Wiener, não é possível entender a relação entre máquinas e humanos apenas com especialistas de uma só área do conhecimento. As instituições de pesquisa, valendo-se da elite pensante proveniente de diversas áreas, vão construir a polarização que caracteriza o mundo fechado, cercado e sitiado da guerra fria, formulando estratégias e simulando hipóteses com o suporte do computador.

Cukierman também chamou atenção para a complexidade da distinção entre realidade e ficção, a partir da exibição de um breve filme institucional da IBM, que torna a ficção do Dr. Fantástico assustadoramente mais real. No debate, foi salientado o aspecto político dos artefatos, por não haver dissociação entre o social e o técnico, o político e o tecnológico, já que estamos lidando a todo momento com relações, com agenciamentos sociotécnicos. Na atualidade, quando até mesmo nossa memória é mediada por máquinas de informação, é preciso desconfiar das visões maniqueístas associadas à tecnologia, criando novas maneiras de pensar o mundo e a novidade que nele se apresenta. O filme de Kubrick nos ajuda a situar a aurora deste mundo novo e seus desdobramentos. Nossa próxima sessão acontece no dia 6 de abril com a exibição do clássico Morte em Veneza, de Luchino Visconti. Teremos a alegria e a honra de receber, como convidado do mês, o filósofo Auterives Maciel Junior, doutor em Teoria Psicanalítica pela UFRJ e professor de Filosofia da PUC-Rio. Ele apresentará a palestra A condição da obra de arte e o tarde demais. Um programa imperdível. Anotem na agenda, compartilhem pelas redes sociais e divulguem para os amigos. A entrada é franca. Até lá!


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